Paraíso,
14 mil anos atrás.
Quando
dizem que a fé pode mover montanhas, não é apenas uma força de
expressão, é um fato! Houve um tempo em que, durante os primeiros
passos da civilização humana, pessoas se destacaram em suas
aldeias, cidades e povos por seus grandes feitos, seja combatendo os
inimigos rivais ou por outros atos heroicos. Essas pessoas, após a
morte, continuaram sendo veneradas e solicitadas no auxílio dos
vivos, fosse para curar doenças, inspirar em batalhas, qualquer que
fosse a ajuda. Como durante este tempo a alma dos mortos ainda não
era admitida no Paraíso, por decreto dos arcanjos, o culto e a
consciência humana deram a essas almas dos mortos grande poder, e
assim eles se tornaram os deuses da antiguidade.
Em
locais onde o plano físico e o mundo espiritual se conectavam, os
tais deuses conseguiam interagir e se comunicar com seus servos, e no
reino espiritual eles criaram verdadeiros impérios, que não demorou
muito para começar a incomodar de verdade os arcanjos, que se
consideravam únicos dignos de adoração, já que eram filhos
diretos de Deus, e não almas evoluídas. Miguel, irado como sempre,
inciou uma campanha bélica que foi chamada de Guerras Mitológicas,
e durante milênios os anjos combateram os deuses “pagãos” em
seus territórios. Algumas batalhas eles venceram, mas outras, a
maioria, foram vergonhosamente derrotados. Nem mesmo quando os
próprios arcanjos Miguel, Lucifer, Gabriel e Uriel resolveram ir na
linha de frente, conseguiram derrotar completamente espíritos
poderosos como Zeus, Rá e Odin. Enmanuel poderia ter dado a vitória
final aos arcanjos, mas era pacifista e se recusava a sair do lado
dos aposentos onde o Criador estava adormecido.
E
então, como em toda guerra, em certo ponto a situação ficou
insustentável. Mas os arcanjos, arrogantes e confiantes em seus
poderes, jamais capitulariam. A não ser com a proposta, que a
própria Uriel recebeu.
Ela
estava em seus aposentos, confraternizando com seus subordinados em
Luna, primeiro distrito celestial, quando seu fiel escudeiro, o
serafim Menadel, lhe deu a notícia.
-
Minha senhora, - disse o anjo de seis pares de asas, porte atlético
e pele morena. - Um mensageiro dos pagãos está aqui, nas portas do
Paraíso.
-
Quem? Quem ousa? - ela perguntou, levantando-se irada e mudando o tom
de suas roupas das tranquilas águas para o fogo irado.
-
Ele se apresentou como Hermes, mensageiro dos deuses olimpianos.
Uriel
se acalmou, voltando ao tom azul. Ela tomou postura, ordenou que
Menadel escoltasse o visitante até ela e prometeu a si mesma
tratá-lo com toda a educação que um mensageiro merece, seja quem
ele fosse.
-
Bem vindo. - disse ela, abrindo os braços. Seu tom agora era o verde
das florestas, com pétalas multicoloridas dançando ao seu redor.
-
É uma honra conhecê-la pessoalmente. - respondeu o homem, um jovem
magro, usando toga branca curta e com pequenas asas saindo de seu
capacete e sandálias. - Meu nome é Hermes, filho de Zeus e
mensageiro dos deuses olimpianos.
-
À que devo a visita, senhor Hermes? - perguntou a arcanjo, curiosa.
-
Serei sucinto, minha senhora, pois o tempo é curto, e sangue
continua sendo derramado enquanto falamos. Trago uma proposta vinda
não somente dos lordes olimpianos Zeus, Poseidon e Hades, mas também
um desejo vindo de deuses importantes como Rá, Odin, Amaterasu,
Shiva e tantos outros.
-
Todos eles se reuniram? Quando?
-
Não saberia informar, foi uma reunião de cúpula. Mas eles desejam
falar pessoalmente com todos os arcanjos. Se possível aqui mesmo, no
reino de vocês, onde os anfitriões ditam os termos. Lógico que,
somente com uma promessa de salvo conduto.
-
E porque nós faríamos isso? - Uriel desafiou. Seu tom foi se
avermelhando vagarosamente, e as folhas e flores em suas vestes foram
incendiando.
-
Minha senhora, sou apenas um mensageiro, mas se me permite a ousadia,
repetirei as palavras exatas de meu tio Hades; Ou vocês aceitam a
reunião e o acordo de paz que será proposto, ou todos os deuses se
unirão em um único exército e atacarão com todas as forças o
Paraíso, aniquilando não somente os anjos, mas agindo na Terra e
destruindo seus seguidores.
Uriel
não podia acreditar no que ouvia. Até que ponto a petulância
daqueles espíritos inferiores poderia chegar? Eles era almas humanas
evoluídas com as preces dos vivos, mas nunca poderiam fazer frente
aos arcanjos, filhos diretos do próprio Criador do universo. Sua
resposta seria imediata, ela iria incinerar aquele mensageiro com
sorriso zombeteiro e enviar seu corpo carbonizado à seu pai, que
auto proclamava deus dos raios, mas nunca seria capaz de criar
descargas elétricas como ela.
Porém,
antes de executar sua decisão, alguém impediu sua mão de se erguer
com a força do pensamento. Ela olhou para trás e sentiu a aura
imensamente superior de seu irmão mais velho, o Primogênito,
Enmanuel.
-
Diga a Zeus e aos outros que a reunião está marcada. - disse
Menadel, surgindo das sombras do palácio de Uriel, usando sua
costumeira toga branca com uma faixa vermelha. - Tratarei com meus
irmãos sobre a melhor data e o local.
Hermes
acenou positivamente com a cabeça, reverenciando aquela entidade que
era ao mesmo tempo calma e poderosa. Ele mostrou um pergaminho mágico
onde o receptor da mensagem deveria assinar, concordando com a
reunião. Enmanuel prontamente rubricou e autorizou a saída de
Hermes do Paraíso sem que ele fosse molestado.
-
O que você fez, irmão? - perguntou Uriel, finalmente sentido a mão
livre. Ainda estava flamejante.
-
Eu que pergunto o que pretendia fazer, irmã? - ele retrucou
calmamente. - Se tivesse atacado um mensageiro, protegido pelas leis
universais de hospitalidade, teria declarado uma guerra cósmica de
proporções inimagináveis!
-
Que leis universais? - ela debochou. - Nós somos a lei! Nós somos a
palavra! O Pai nos escolheu, e eles deveria nos venerar antes de se
tornarem uma imitação e chamarem a si mesmo de deus! Que piada de
mau gosto!
-
Não é assim que funciona. Um dia vocês entenderão, principalmente
você, querida irmã. - ele já ia se retirando.
-
Sabe que Miguel e Lúcifer não vão gostar nada dessa sua decisão
sem que fossem consultados, não sabe?
-
Deixe que eu cuido de apaziguar os ânimos de nossos irmãos
impetuosos. - ele respondeu, sorrindo.
O
local escolhido para a mais importante reunião do universo até
aquele momento foi um salão especialmente construído no Castelo de
Júpiter, um gigantesco castelo localizado no quinto reino celestial,
logo abaixo do Solarium, a morada de Deus. O salão foi divido em
bancadas dispostas como escadas, com centenas de assentos para todos
os deus que resolveram participar da reunião. De frente a essas
bancadas, sentados em seus seis tronos magistrais, estavam os
arcanjos. No nível mais próximo deles, logo de frente, sentavam-se
Zeus, Odin, Rá, Vishnu, Ahura Mazda, Amaterasu e outros deuses
principais das diversas mitologias de todo o velho mundo. Todos
falavam, riam ou discutiam, quando Enmanuel se levantou e pediu
silencio, prontamente atendido.
-
Eu declaro aberta a Reunião Celestial! - disse ele, levantando
ligeiramente as mãos. - Pai, nosso senhor e criador, peço que
abençoe esse encontro e nos inspire a encontrar a paz! Com a
palavra, o representante dos olimpianos, Zeus!
O
rei dos olimpianos e deus dos raios, Zeus, um homem de barba e longos
cabelos grisalhos, que na verdade eram formados por nuvens, exibia um
porte físico invejável. Se levantou com toda imponência e foi até
o centro da rotunda, de onde poderia falar tanto para os deuses
quanto para os anjos.
-
Obrigado pela saudação, senhor Enmanuel. Que a luz do Criador nos
abençoe neste momento sublime. Senhoras e senhores! - sua voz soava
como trovão. - Venho representando não somente meus irmãos e
parentes olimpianos, mas também aqueles que vieram do norte gelado,
do sul desértico, do extremo oriente e de todo o mundo conhecido,
implorar para que esta guerra sem sentido termine de maneira
pacífica. Vivemos em um mundo diversificado, deixado para nós pela
divina providência do criador. Nós, deuses, fomos agraciados com o
poder pelas preces de nossos compatriotas, mas nem por isso deixamos
de ensinar que há apenas um Deus verdadeiro que deve ser realmente
glorificado. Somos todos irmãos, e filhos da mesma força que rege o
universo, e uma guerra onde cada vez mais de nós encontramos a morte
final é uma carnificina inútil que deve ser deixada de lado em
honra à Ele o quanto antes! - o fim do discurso foi coroado com uma
salva de palmas de quase todos os deuses pagãos. Pelo menos os que
queriam a paz. Do lado dos arcanjos, apenas Enmanuel e Rafael
aplaudiram discretamente. Quando Zeus deixou a tribuna, Miguel se
levantou, para falar pelo lado dos celestiais. Era um guerreiro com o
mesmo porte físico de Zeus, mas se assemelhava aos extremo
orientais. Seus cabelos eram lisos e curtos, os olhos amendoados e
ariscos, sempre prontos a identificar um inimigo. Como característica
mais marcante, usava uma armadura de combate completa, e quase nunca
tirava a mão de sua arma, a Espada do Fogo Eterno, uma lâmina
forjada antes mesmo do universo e cuja chama jamais se apagava.
-
Senhoras e senhores, - começou o discurso como Zeus, mas sua voz era
bem menos amistosa, apesar de ser igualmente potente. - é de
conhecimento de todos que não fomos nós, os arcanjos, filhos
diretos de Deus, que começamos esta guerra. Quem iniciou o combate
foram aqueles que, em um ato de total blasfêmia e heresia, se auto
proclamaram deuses! Humanos, as últimas criaturas do universo, que
por seus atos de bravura, não vou negar, após a morte continuaram
sendo cultuados! Ora, dizem que ainda ensinam aos seguidores vivos os
louvores ao Criador único e Altíssimo, mas eu não vejo nenhum
templo erguido para nosso Pai em suas terras! Eu não ouço o nome
Jeová, Yaweh, Demiurgo na boca de seus seguidores, apenas Urano, Pan
Ku, Brahma e outras alcunhas que nada tem a ver com a natureza
benevolente de nosso Deus único e verdadeiro! Nós, anjos e
arcanjos, fomos designados por Ele próprio para sermos defensores
ferrenhos da Palavra, e nenhum falso deus deve ser cultuado além
Dele! - o arcanjo terminou com um murro na bancada. Um urro
seguiu-se, uma mistura de apoio e indignação. Nenhum dos arcanjos
se manifestou, embora um sorriso pudesse ser visto nos lábios de
Uriel.
A
reunião seguiu-se por muito tempo, dias ou séculos, o tempo era
relativo no Paraíso. Quase todos tiveram voz na tribuna, uns
defendendo a paz, outros a guerra e a destruição da facção rival.
Ao final de intensos debates, Enmanuel, a quem nenhum ali presente
era tolo de desafiar, mais uma vez ergueu-se e pediu silencio com as
mãos levantadas.
-
Por votação, assim decidiremos. Quem é a favor do prosseguimento
da campanha militar e disputa territorial através da supremacia
bélica, levante a mão direita!
Das
centenas de entidades ali presentes, poucos levantaram aos mãos
apoiando. Entre os arcanjos, Miguel e Uriel apenas, e a abstenção
de Lúcifer e Gabriel, até o momento ao lado do irmão combatente,
foi uma surpresa. Entre os deuses, poucas mãos também foram
erguida, a maioria pelos considerados deuses da guerra, combate ou
trevas. Hades, Ares, Set, Thor, Shiva, dentre outros.
-
Quem é a favor do acordo que determina que, a supremacia deverá ser
decidida através dos cultos humanos, e que a função dos deuses ou
anjos deverá ser apenas inspirar e orientar, jamais interferindo ou
se relacionando com homens e mulheres mortais, levante a mão
direita!
A
visível maioria esmagadora levantou a mão, embora esta última
parte do acordo, determinada de surpresa, tenha incomodado deuses
como Zeus, Afrodite e Ishtar, conhecidos por seus relacionamentos
amorosos com mortais. E assim, após uma reunião longa e importante,
as Guerras Mitológicas chegaram ao fim com um cessar fogo assinado
por todos ali presentes, e até hoje é possível ver naquela mesma
rotunda, no Castelo de Júpiter, um quadro onde Enmanuel e Zeus
trocaram um caloroso aperto de mãos selando a paz.