Atlântida,
10 mil anos antes de Cristo.
Sempre
que alguma coisa é criada, dizem que ela evolui para melhor com o
tempo. Por isso, sempre o que é feito por último é feito com mais
carinho, onde as imperfeições são eliminadas e as qualidades,
enaltecidas.
Na
criação do universo não foi diferente. O ser humano, a maior
inspiração de Deus, foi a última espécie viva a ser criada. E
mesmo na criação do homem, primeiro foi feito o macho, e depois, a
fêmea. A mulher, obra mais sublime de Deus. Mesmo entre os arcanjos,
Uriel, a única em forma feminina, foi criada por último antes do
Big Bang que deu origem ao universo. E ela, com seus poderes trans
morfos se torna uma das criaturas mais belas da existência. E com a
mulher humana Deus caprichou mais ainda. A primeira possuidora de
alma, Lilith, de tão perfeita adquiriu soberba e foi expulsa do
Jardim do Éden, sendo capaz de seduzir o arcanjo Lúcifer e ser
responsável pela perdição de Adão e Eva tempos depois. Mas
Lúcifer não foi o único celestial a ser seduzido pela figura
feminina. Durante milhares de anos, vez ou outra, anjos observavam as
humanas e se apaixonavam, formando famílias e criando filhos. Essa
prática era condenada, principalmente por Miguel, que abominava a
humanidade desde que Deus partiu para o descanso no final do sexto
dia da criação. Mas apenas se tornou proibida após o acordo que
findou as Guerras Mitológicas, quando Enmanuel, o arcanjo supremo,
decretou a lei que impedia que qualquer ser superior, anjo ou deus
pagão, copulasse e gerasse filhos em mulheres mortais.
Mas
como em toda lei, sempre há alguém para burlar. Samyaza, um
valoroso serafim da casta virtutes, estava sempre perambulando pela
Terra ou plano astral, orientando as almas perdidas e ensinando as
pessoas a amarem a Deus e ao próximo. Mas quando ele conheceu uma
bela e bondosa mulher dos desertos árabes, seu coração caiu em
enorme tentação. Não resistindo, ele descumpriu a lei celestial e
formou uma família, incentivando vários seguidores, serafins e
querubins das mais diferentes castas a fazer o mesmo. Para eles,
aquele era o maior louvor que poderiam prestar a Deus,
confraternizando de maneira espiritual e carnal com a sua mais
perfeita criação, a mulher. Para esconderem seus crimes e
protegerem seus filhos, Tamiel, serafim da casta principatus e
poderoso mago celestial, ensinou aos demais anjos a suprimira aura a
ponto de desaparecer do radar celestial, assim como proteger suas
crias, disfarçando seus poderes como magia comum, embora muito mais
poderosa e formidável.
Gerações
se passaram, e os nefilins, como eram chamados os descendentes dos
anjos, fundaram o império de Atlântida. Localizado em uma ilha do
gigantesco mar que seria mais tarde conhecido como oceano Atlântico,
o Império de Atlântida, ou Império dos Guardiões, era de longe a
nação mais avançada do mundo na época. Misturando magia e
tecnologia, os atlantes eram capazes de criar equipamentos e ergueram
cidades não somente nas ilhas, mas colônias em todo o velho
continente ao leste. E assim eles teriam vivido por toda eternidade,
não fosse a sagacidade daquele que era considerado a mente mais
aguçada do universo. De alguma maneira, Lúcifer descobriu o segredo
dos atlantes, e pretendia em breve fazer uma visita ao seu imperador.
*
Sozinho
em seu palácio, admirando a luz do luar banhar seu reino de maneira
esplendorosa, Samyaza observava cada pedaço de terra, planta e
mármore branco de que era feito seu país. Na forma humana, era um
homem loiro de feições másculas, alto e imponente, mas também era
um rei bondoso e adorado pelos súditos. Atravessando o salão
principal de sua morada, que tinha mais de quinhentos metros apenas o
átrio, Samyaza sentiu um abalo no barreira espiritual. Uma aura
imensa se formava, alguma entidade mais poderosa do que ele estava
neste momento passando do astral para o plano físico. Ao olhar para
trás, caiu prostrado de joelhos ante a majestade do visitante.
-
Arcanjo Lúcifer? - perguntou o imperador atlante, ao reconhecer seu
visitante noturno, um anjo de enormes asas brancas e beleza anormal,
de tão divina.
-
Olá, Samyaza. Faz muito tempo desde que nos vimos pela última vez.
- respondeu o Portador da Luz, com sua voz melodiosa.
-
A que devo a honra inenarrável da visita? Se eu soubesse...
-
Não poderia fazer nada. - cortou ele. - Resolvi aparecer quando
todos estão dormindo, porque infelizmente a minha aura é tão
poderosa que desprenderia imediatamente do corpo a alma de qualquer
mortal que se aproximasse, além de queimar seus olhos ante a visão
de minha face perfeita.
Era
verdade, Samyaza pensou. Lúcifer fora benevolente, se aparecesse
durante o dia, perto de sua nova esposa e filhos, todos ficariam
cegos, loucos ou morreriam.
-
Em que posso ser útil, meu senhor?
-
Ah, Samyaza, meu querido... - Lúcifer recolheu as asas e caminhou
pelo salão, admirando o próprio reflexo no chão polido. - Acho que
já imagina porque estou aqui. Ou pensou que ninguém fosse
encontrá-los um dia? Você e todos aqueles que o seguiram cometeram
um crime grave. Violaram um dos termos assinados no acordo que pôs
fim as Guerras Mitológicas, milhares de anos atrás. Lembra-se?
O
coração do atlante acelerou. Era verdade, ele sabia muito bem
disso. E nada poderia fazer, Lúcifer, com todo seu poder de arcanjo,
poderia vaporizá-lo com um só dedo. Samyaza resolveu arriscar uma
outra abordagem, mais ousada que o ataque físico.
-
Pensei que, dentre os celestiais, o senhor entenderia. - Lúcifer o
encarou, fingindo confusão. - A mortal Lilith. A Serpente do Éden,
meus súditos a encontraram para lá do Eufrates. O senhor se
apaixonou e deu a ela os poderes para tentar Eva e Adão, não foi?
Lúcifer
sorriu. Claro que eles tinham encontrado Lilith, ele sabia. Afinal,
ainda a mantinha como amante, escondendo-a em uma fortaleza
igualmente invisível graças a seus poderes. E foi a própria Lilith
que seguiu os atlantes e contou para Lúcifer o que descobrira.
-
Mas eu entendo, meu caro, por isso estou aqui. Acha que se fosse
Miguel, seu amado império já não estaria em chamas? Se ele
descobrir o que se passa, em segundos suas legiões de dominiis
estarão sobrevoando e incendiando cada pedaço desse belíssimo
mármore branco, o que seria um enorme desperdício.
Samyaza
começara a entender. Lúcifer era ardiloso, inteligente e impossível
de ser ludibriado. Na certa ele apareceu ali secretamente, sem mesmo
contar aos demais arcanjos, para propor algum acordo ou exigir algo
em troca de seu silêncio. Mas o que ele, um serafim que agora se
considerava mais humano do que tudo, poderia oferecer à um arcanjo
da magnitude da Estrela da Manhã?
-
O que deseja, milorde? Como posso eu, humilde servo, interceder em
favor de meus súditos, para que eles não enfrentem a injusta fúria
celestial?
Satisfeito
consigo mesmo, Lúcifer revelou sua proposta. Mas, embora já
esperasse, não pode esconder sua decepção ante a negativa de
Samyaza.
-
Meu senhor, eu sinto muito mas não posso. Considero isso impossível,
na verdade, e mesmo que fosse possível, é algo que traria um
transtorno enorme a todo o universo. Além de ser a mais vil das
traições. - ele respondeu, sabendo que estava assinando seu
atestado de morte. Mas era o certo a se fazer.
-
Ora, não me venha falar de traição! - Lúcifer ficou indignado,
mas não libertou sua aura, temendo desintegrar o palácio. - Ah,
Samyaza, eu tenho virtudes e defeitos. Mas se tem uma coisa que eu
não muito, é ser paciente. Sou justo, sou o patrono dos anjos
juízes, e não vejo escolha a não ser evocar a lei. Tentei propor
um acordo, mas você cuspiu em minha mão amiga. Eu sinto muito. - e
desapareceu, levando com ele a esperança de um futuro para
Atlântida.
Tempos
depois, uma tempestade torrencial castigou o mundo, junto com o
derretimento dos polos glaciais e maremotos com dezenas de metros de
altura. Ao mesmo tempo, o arcanjo Miguel, furioso mas ao mesmo tempo
satisfeito, agrilhoava no topo do Palácio de Pérola tanto Samyaza
quanto seu séquito de derrotados.
-
Contemplem! - disse ele, erguendo o queixo do imperador atlante e o
obrigando a olhar para seu reino em chamas, enquanto uma tsunami
colossal se aproximava. - Esse é o destino dos traidores. Mas pior
do que um traidor, é um fraco! Todos morrerão! Seus filhos, netos e
todos aqueles frutos de sua relação fraca com essas descendentes de
macacos! Mas não só eles, todos esses indignos perecerão,
afogados! E eu provarei à Enmanuel e Rafael que eles estão errados,
o tal de Noé e sua família não sobreviverão em um mundo vazio!
Contemple o seu império afundar, Samyaza!
E
assim, após catástrofes, maremotos e tsunamis, Atlântida foi para
o fundo do oceano e nunca mais emergiu.